quarta-feira, 8 de outubro de 2025

🌿 Descobrir-me no espetro: quando finalmente percebi que podia ser autista

 

Durante anos senti-me “diferente”, até perceber que talvez não fosse o mundo que eu não entendia — mas o mundo que nem sempre me entendia a mim. Esta é a história da minha descoberta interior e do abraço que encontrei em mim mesma.

Durante muito tempo senti que havia algo em mim que não se encaixava completamente no mundo à minha volta.
As pessoas pareciam entender-se com facilidade, enquanto eu, muitas vezes, sentia que falava uma língua diferente — invisível, mas real.
Cresci a tentar adaptar-me, a observar, a copiar gestos e expressões, a disfarçar desconfortos e a controlar emoções que pareciam sempre “demais”. E durante anos, pensei que o problema era meu.

Foi apenas quando comecei a cruzar-me com testemunhos de outras pessoas autistas que algo dentro de mim despertou.
As histórias que lia soavam assustadoramente familiares. Pequenos detalhes, sensações, formas de pensar e reagir — tudo começava a fazer sentido.
E, pela primeira vez, senti que havia uma explicação para aquilo que sempre me fez sentir diferente: a possibilidade de estar no espetro do autismo.

Ao mergulhar nesse auto conhecimento, percebi muitas coisas sobre mim.
Percebi que não é “mania” querer previsibilidade, é necessidade de segurança.
Que não é falta de empatia precisar de tempo sozinha depois de estar com pessoas — é sobrecarga emocional e sensorial.
Que não é “falta de flexibilidade” sentir desconforto com mudanças repentinas — é forma de me proteger de um mundo que, por vezes, é demasiado intenso.
E que o meu hiperfoco — essa paixão quase incontrolável por certos temas — não é obsessão, é uma das minhas formas mais puras de expressão e aprendizagem.

Olhar para trás com esta nova lente trouxe-me paz.
De repente, momentos do passado ganharam outro significado.
Deixei de me ver como alguém “fora do normal” e comecei a ver-me como alguém que apenas percebe, sente e reage ao mundo de forma diferente.
E isso… é bonito.

Muitas vezes, quando falo sobre esta possibilidade, algumas pessoas questionam:
“Mas tu não pareces autista. És tão bem falante, sociável, despachada, inteligente…”
Ouço essas palavras com carinho, mas também com um certo peso — porque mostram o quanto ainda existe desconhecimento sobre o autismo, sobretudo nas mulheres.

Na verdade, tenho dislexia e misofonia, ambas diagnosticadas em 2016 pela psicóloga que me acompanhava na altura.
A misofonia faz com que sons específicos — como mastigar, clicar de canetas ou certos ruídos repetitivos — me causem um desconforto quase físico, uma reação difícil de explicar, mas muito real.
E sim, sou comunicativa e consigo adaptar-me socialmente, mas o esforço que isso exige é enorme.
Tento ser sociável, mas, depois, fico emocionalmente e fisicamente esgotada.
Sou despachada porque assim fui educada — aprendi a reagir com rapidez e a resolver o que é preciso — mas isso não apaga a confusão ou o cansaço que por vezes sinto por dentro.
E quanto à inteligência… ser inteligente nunca foi o oposto de estar no espetro autista.
Significa apenas que o meu cérebro funciona de forma intensa, seletiva e curiosa — com áreas em que mergulho profundamente e outras que me desafiam mais.

Também recordo agora um episódio importante da minha vida que, na altura, ninguém associou a nada disto.
Em abril de 2002, fui diagnosticada com epilepsia generalizada idiopática.
Hoje, olhando para trás, percebo que esse diagnóstico poderia ter sido um sinal de algo mais — talvez já uma manifestação de autismo que não foi valorizada na altura.
Durante dois ou três anos tive crises convulsivas e, depois, desapareceram tão repentinamente como tinham aparecido.
Mais tarde, descobri que o cérebro de uma pessoa autista pode ter maior atividade elétrica do que o de uma pessoa não autista, o que me fez acreditar que, afinal, em 2002 tive um mau diagnóstico.
Não por culpa de ninguém, mas porque, simplesmente, o conhecimento sobre o autismo — especialmente em mulheres — era muito mais limitado.

Ainda hoje tenho reações típicas de uma pessoa autista.
Há dias, num momento de grande entusiasmo, dei por mim a saltitar de alegria, de forma espontânea, como uma criança autista faz.
O meu marido olhou para mim e sorriu, dizendo: “Estás a ver? Ainda hoje fazes isso. Provavelmente já o fazias em criança e ninguém valorizou.”
E é verdade.
Recordo que, em pequena, tinha o hábito constante de andar nas pontas dos pés — algo que, na altura, ninguém achou relevante, mas que hoje percebo ser mais uma peça do puzzle que me ajuda a compreender-me melhor.

Juntando também o facto de ter hipersensibilidade à luz, durante anos, foi muito difícil tirar fotografias, porque sempre que o flash disparava eu fechava os olhos, tenho imensas fotografias com os olhos fechados.  O facto de não suportar certos ruídos, ou quando os mesmos ficam em loop na minha cabeça, torna-se esgotante. O facto de não suportar certos tecidos,  etiquetas, toques, ou mesmo bichos a tocar na minha pele. 

Esta descoberta não me prendeu a um rótulo.
Pelo contrário — libertou-me.
Ajudou-me a aceitar as minhas diferenças, a cuidar melhor de mim e, acima de tudo, a deixar de tentar ser quem não sou.

Hoje, continuo a aprender — sobre o autismo, sobre mim e sobre a forma como o mundo nos ensina a esconder aquilo que nos torna únicos.
Mas, pela primeira vez, sinto-me em paz com a pessoa que sou.
E talvez seja isso o mais importante: deixar de tentar encaixar e começar, simplesmente, a existir.

Com carinho,
Ana 🌸

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